terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Carta ao Meu País


O País que eu quero construir tem filósofos. O País que eu quero construir tem sonhadores. O País que eu quero construir tem apaixonados. O País que eu quero construir tem construtores. Porque nos deixámos de perguntar, quando nos deixámos de interessar? Quando foi que tudo começou a parecer normal? Ary dos Santos, agora novamente reeditado na Rua da Saudade, parece ter ganho novo significado. Será coincidência podermos voltar a ouvir a sua voz problemática sem necessidade de comprovar os factos, sem ser mais do que um sentimento comum? Ainda não terá o recorde da nossa mágoa caído o suficiente? Será que 25 anos depois da sua morte voltamos a precisar dele como nunca antes precisámos... Porque não “podemos chamar filho de uma ao rapazote”? E a verdade é que os tachos ainda não caíram todos... Não me interessa se disse ou não disse, não me interessa se fez ou não fez, o que me interessa é que num País em que se aceita que seja quem for tenha a sua liberdade condicionada, ou recondicionada, pelo que, como foi referido como “calhandrices” (para não falar que “calhandrices” uso eu em casa, com os meus amigos ou com os meus vizinhos), em vez de se defender a integridade de um ideal democrático, deixa-me boquiaberto. Um País, em que os artistas já se calaram, e quem protesta é por causa de carroceis (há algo mais poético?), em que a crítica não crítica nem opina, em que a revista volta a fazer sentido, em que os poetas já não sabem poetar, em que sinto que algo não está bem, mas como qualquer doença que não se deixa diagnosticar vai morrendo, não pode ter um fim muito esplendoroso. Não quero políticas sociais vanguardistas ou humanitárias se se educa um País para ser burro. Não quero computadores para todos, nem apoios financeiros para o arrendamento jovem se no meu País vejo acomodação, se não ouço vozes a gritar, eu preciso de loucos no meu País. Quero sonhadores que vejam que não está tudo bem, que o dinheiro cada vez é menos, que se ocupam cargos por tudo menos mérito, que a incompetência é coroada com subsídios e as poupanças se perderam, que a mão que está a alimentar não alimenta com pão mas com farinha e água. Queria um País de sonho, em que da discórdia nascesse a luz, em que se dessem graças aos Céus por haver quem esteja contra nós, porque assim podemos ser melhores, crescer e aprender. Queria um País em que em vez do governo se congratular com uma voz que se pode afastar, ficasse em pânico, temesse pelo futuro, porque se não me disserem onde posso estar a errar jamais terei consciência de mim, mesmo que eles estejam errados. Mais uma vez e como sempre posso estar errado, mas se ninguém me disser que estou “errado”, como posso saber quando erro? Queria um País em que todos fossem do contra só para podermos ser melhores, queria um País em que todos acordassem de manhã descontentes e construíssem esse dia também. Temos ainda tanto que aprender, aprender a ser insatisfeitos, a ser curiosos, a não aceitar, a lutar todos os dias por esta casa de quatro paredes com vista para o mar, em que as janelas têm os vidros partidos e ninguém os quer ver. A não ter inimigos nos outros mas aliados porque se estão contra é porque também eles querem um País melhor. De que serve num jogo de futebol onze jogarem contra 1, se a bola desorientada passa por vinte e dois pés com a ajuda silenciada de um árbitro? Um País é como um jogo, e um bom jogo precisa de tudo: Pinhões, cachecóis, tremoços, gorros, chuva, sol, vento, onze contra onze, companheiros de equipa, adversários. E quando acaba todos saímos, uns derrotados, outros vitoriosos, conscientes que também nós fizemos um bom espectáculo. Será ainda coincidência o filme Ágora, de Alejandro Amenábar, estar agora em exibição. Quem somos nós? os pagãos? os judeus? os cristão? Porque não há uma Hypatia no meu País, só uma, para acreditar em como é bom o SABER. Quero um País de Poetas, não tivesse Óscar Wilde razão no seu Declínio da Mentira! Pode não ser a melhor carta, mas tem o País que quero.