segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Citações


"Não esqueças que esse ser ao qual tu chamas escravo nasceu da mesma semente que tu, goza do mesmo céu, respira o mesmo ar, vive e morre como tu. Podes vê-lo livre, como ele pode ver-te escravo... Toma cuidado, pois, para não desprezares um homem cuja condição pode ser a tua, no momento em que lhe manifestas o teu desdém."


Lucílio, Epistulae Morales ad Lucilium


E não continuamos nós hoje a ter escravos, e na nossa ignorância a escravizar e ser escravos?

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Quotes

"Tás olhande? Mortes na bebem!"



Júlia Espírito Santo (Maria D'aires) in Mortinho por Chegar a Casa, 1996

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Títulos IX - Longos Dias Têm Cem Anos


“How Long is a Swatch Minute?”
O Tempo tem sempre a duração do tempo em que levamos a pensar nele.
Longos anos têm também cem dias. Uma vez, em criança, fechei os olhos e pensei que quando acordasse o tempo tinha passado como em um filme em que se adormece criança e se acorda adulto. Lembro-me só que foi num fim de tarde antes da minha avó chegar a casa e que quando abri os olhos o tempo ainda não tinha os seus cem anos e aqueles pareciam longos dias. Depois desse dia voltei a tentar marcar a minha vida com esse abrir e fechar de olhos, que nos metamorfoseia, mas nenhum dos momentos em que tentei repetir esse feito me marcou, talvez porque naquele dia o tempo tenha tido um significado que nunca voltou a ter, não sei.
O tempo, sim, dá tantos saltos que hoje ao olhar para mim naquele sofá-cama encostado à parede, sozinho, em casa, vejo-me Hoje a fechar os olhos e por momentos a voltar àquele dia. Pouco tempo depois a Swatch teve umas das melhores publicidades de que me lembro, afinal Quanto tempo dura mesmo um minuto? (pergunta livre) O passado, o presente e o futuro todos eles se condensam num único minuto, em que não tanto Todo o Mundo em Todas as Perspectivas (o olhar de Deus) como Jorge Luís Borges ofereceu às suas personagens mas, como no quadro de Edward Burnes-Jones, a nossa vida consegue-se sonhar, ainda que por breves momentos, em todos os seus longos dias que têm cem anos.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Título X - Eu Hei-de Amar uma Pedra

Numa época em tudo é possível de ser colocado em rankings, decidi criar o meu próprio rankings de títulos dados a obras literárias portuguesas. O que conta não é tanto a narrativa que segue o título, mas o título como "nome" da obra, como identidade independente desta que nos atrai e nos cativa por si só.


Em décimo lugar coloco Eu Hei-de Amar uma Pedra. Se o afastarmos da história de amor impossível que dura 50 anos, ficamos apenas com um desejo de amor. Amar uma pedra é ao mesmo tempo a impossibilidade de amar mais do que uma pedra e a possibilidade de amar tudo o que esteja para lá da pedra. Por outro lado, o deíctico mais não faz do que colocar-nos, a nós, nessa possibilidade. Também eu serei capaz de amar uma Pedra, ou no fim de contas não amei Eu sempre uma Pedra. Porque será a Pedra no meio do caminho do Drummond um obstáculo e não somente a finalidade daquele caminho. Se eu amar a Pedra que tem no meio do caminho talvez as minhas retinas fatigadas brilhem de novo. Não será o Suplício de Sísifo o seu amor por aquela Pedra. Talvez no dia em que a sua Pedra chegue ao topo, deixe de ser necessário lutar por esse amor.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Os Versos que me Fizeram

Há anos atrás ouvi uma história... é curioso quando um dia nos lembramos dela e de algum modo a nossa vida, e digo literalmente a minha vida, começou neste poema...Amo-vos muito, por me terem feito tão geneticamente... como direi ... deixa ver... Perfeito (hoje posso, só por hoje):

Deixa-me dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer
São talhados em mármore de Páros
Cinzelados por mim pra te oferecer.
Têm dolências de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa-me dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!
Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!
Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!
Florbela espanca,1894-1930

domingo, 30 de agosto de 2009

A-manhã

Desaparecer...
Acordar antes de ser hora de acordar;
Tomar o pequeno-almoço fora de casa;
Tirar fotografias numa máquina de metro;
Ir a um lugar onde nunca tenha ido;
Perder-me e almoçar num sítio novo;
Ler deitado na relva;
Ver um filme numa verdadeira sala de cinema;
Voltar a um lugar só para recordar;
Comprar uma coisa inútil;
Comprar um verdadeiro presente;
Sorrir a quem se cruzar comigo;
Entrar numa loja de bairro;
Encontrar um livro velho;
Ver o pôr-do-sol a partir do Tejo;
Jantar sem velas;
Dar os parabéns a mim mesmo...
E encontrares-me...

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Música na razão

Se temos dúvidas sobre o momento em que a nossa vida começa a mudar, basta ver quando foi a última vez em que mudámos o CD que ouvimos vezes sem conta. Quando ele volta para a caixa, para dar lugar a novas músicas, esse é o momento. Muito mais notório do que cortar o cabelo.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Cine de Vita

Aristóteles defende que a arte deve ser verosímil. Mais do que ser verdade ou um decalque da realidade, ela deve parecer real, simples como os acontecimentos do dia a dia, com características que a tornem especial e única, mas que não ultrapasse a nossa noção de realidade.
Quando ocorreu o atentado às Torres Gémeas, muito se falou em a realidade ultrapassar a ficção. Mas quando é que a realidade ultrapassa a ficção? Como é que conseguimos perceber o mundo quando a nossa história de vida ultrapassa os nossos conceitos ficcionais? Quando é a nossa vida?
Existem momentos únicos na vida de cada um, às vezes um presente, uma festa surpresa, um encontro inesperado, uma revelação bombástica, a descoberta de uma traição, um príncipe, um vilão, Cassandra, Pitonisas, um Cavalo de Tróia, uma verdade uma mentira e muitos enganos.
E quando tudo isto se une numa mesma história, num único espaço temporal, e damos por nós a viver muito além da ficção, muito além do que acreditámos durante tanto tempo como verdade. Quando um encontro muda a nossa vida, a põe de cabeça para baixa, quando um segredo se torna em várias verdades, quando magoamos personagens que na nossa história estavam no lugar errado á hora errada. Quando encontros e desencontros moldam os nossos dias. Quando vivemos em dois mundos e de repente eles se cruzam e os príncipes se tornam vilões, os confidentes em marionetas, as setas disparam em todas as direcções, e as revelações não cessam.
E quando pensamos que a história acabou e vamos fechar o livro, sair da sala de cinema ou abandonar a exposição, a vida continua para além de tudo o que nos aconteceu. Em que há feridos que continuam feridos, há mortos que jamais serão ressuscitados. Nós actores, sem papel, das nossas vidas perdidos com todos os filmes, livros, quadros e fotografias às costas sem saber como continuar, porque não nos explicaram o que vem depois.
Existe um êxtase em viver que nos perde e existem histórias que na ficção só são reveladas no fim quando a personagem morre. Como continuamos depois de tudo isto, como explicamos que a nossa vida ultrapassou tudo o que a ficção mostra? E nós actores de um papel nosso fomos seduzidos pela nossa própria vida e pela espectacularidade do que nos acontecia. Como personagens vivemos cada momento bom e mau, e como espectadores ficávamos fascinados com tudo o que acontecia, com o como acontecia.
É terrível a vida ultrapassar a realidade.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Porque

Porque continuamos a ser o nosso maior inimigo...
Porque continuamos a não ver, a não aceitar...
Porque ainda temos esperanças...
Porque deixamos ir...

Porque... são só respostas.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Tenho medo… tenho medo de não ser abraçado, de não conseguir dormir, de sopa quente, de espinhas no peixe, de portas trancadas, de bicos de fogão, de alergias, de cobras, de rir sem parar, de sorrir, de chorar, de lágrimas de alegria, de fotografias antigas, de palhaços, de urtigas, de que me vejam, de que me beijem, do Sol de Agosto ao meio-dia, da Lua nova, de descidas íngremes, de cartas sem resposta, de não acreditar, de não sonhar, de não gostar, de gostar, de caras feias, de caras bonitas, de filmes de terror, da minha arrogância, do abandono, da pobreza, de não ter força, de me entregar, de me defender, de galos, de sufocar, de perder os sentidos, do vazio, de fantasmas, de ver um pôr-do-sol sozinho, de multidões, de metros, do Natal sem enfeites, de beijos sem carinho, de fruteiras sem fruta, de não ajudar, de me intrometer, de pedir, de folhas de papel, do medo que tenho... e medo de voltar a ter frio, outra e outra vez.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

As Idades do Tempo

O Tempo é um lugar na nossa mente porque não existe tempo fora de nós.
O Tempo corrói o próprio tempo. Como uma força renovadora ele queima os campos que plantámos, os edifícios que construímos e as emoções que sentimos, as lágrimas que caem e os sorrisos que ainda sorrimos.
O Tempo cicatriza no próprio tempo. Como um bálsamo ele cura-nos ao aceitar as lágrimas que derramámos e os sorrisos que demos.
O Tempo esquece com o tempo, quando numa caixa de cartão o deixamos esquecer, o transformamos: as lágrimas secam e os sorrisos acalmam-se.
Por fim, o Tempo sorri ao novo Tempo, sempre que novas lágrimas nascem e ousamos sorrir de novo para o Tempo sem ilusões nem memórias.E nas suas idades o Tempo mostra a nossa inocência, nos cheiros que já não existem e naqueles que sabemos que não vão existir, porque o Passado e o Futuro dão lugar a um único Presente.

terça-feira, 14 de julho de 2009

A Minha Lisboa I

Todas as cidades têm sítios especiais, únicos e que quando descobertos são só nossos. A minha Lisboa tem alguns desses lugares mágicos que só eu consigo ver como meus.
O pontão do actual Museu da Electricidade é um desses lugares.
Quando os pescadores escolhem outros pontos para pescar, não consigo deixar de atravessar as condutas de água que antes abasteciam a fábrica. Passar aqueles silos é como regressar aos parques da infância, o perigo de escorregar, que não é na verdade um perigo, depois descer e sentar-me mais perto do rio.
Ali Lisboa junta o ar que entra pelo Tejo com cheiro a mar, o rio que corre já ao sabor das marés e o sol que aquece as colinas da outra margem.
A Ponte recorta-se à direita como uma passagem entre corações, o Cristo-Rei sorri-me de braços abertos, um barco à vela passa e o cacilheiro segue num movimento quotidiano sem fim.
Lá posso chorar, sorrir, rir, cantar, imaginar, sonhar, pensar e não-pensar. Perco-me num tempo que pára para mim, sinto-me sozinho, acompanhado, incompleto e pleno. É um promontório em Lisboa, onde o mundo pode acabar e começar. Onde posso saltar de coração no mais íntimo de mim e sem me perder, perder-me. Onde me encontro todas as vezes mesmo que perdido tente perceber o que passou, o que não regressa, os meus enganos, os meus erros e os meus sonhos. Ali por momentos acredito em qualquer coisa mais forte que a minha vontade e o meu desejo. Deixo o meu coração livre e peço que o vento leve para o rio as mágoas que ainda ficam e que o sol queime os sonhos que só existem na minha memória.
Há lugares em Lisboa só nossos porque nós nos damos a eles de corpo e alma.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

A Liberdade

Passamos tanto tempo a prender-nos que nos esquecemos que somos livres por natureza. Prendemo-nos a coisas, a ideias, a pessoas e prendemo-los a nós como se a nossa liberdade dependesse de estarmos presos. Precisamos da validação dos outros, do seu amor, do seu respeito e não aceitamos que com isso não nos validamos, não amamos nem nos respeitamos por nós. Sempre que libertamos estamos também a libertar-nos.
Durante toda a nossa infância passámos tempos a ler histórias de pássaros feridos que depois de curados um sábio pai ou avô liberta, e a criança sente-se traída e sozinha, porque também ela ficou livre. A metáfora do pássaro curado é esquecida com o tempo, e passamos a amar pela necessidade de estar presos, do nosso amor depender de dizer que nos amam e nos querem.

E se de repente nos libertarmos e deixarmos que livres nos voltem a encontrar. O risco está tão somente na liberdade que ganhamos, porque os nossos pássaros nunca foram nossos de verdades, mesmo presos e com a asa ferida eles eram livres, e ao reconhecer que eles têm que voar, deixamos que todos os dias de manhã nos venham dar os bons dias ao beiral da nossa janela. E quando um dia deixem de vir dar os bons dias foi porque livres seguiram o seu voo.A Liberdade é uma força atroz que nos carrega de energia, que nos afoga nas possibilidades que nos apresenta e na necessidade de correr o risco de ser livres. Se um dia voltaremos a encontrar o pássaro livre, deixa de ser uma questão, porque não dependemos dele. Encontrar o pássaro de novo é tão-somente reconhecer que livres nunca o perdemos e que na liberdade dele ele encontrou a nossa.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Pisa Papéis

Para a Alexandra
As palavras têm pesos que não medimos, porque não sabemos como são recebidas. Como nos lêem no meio de cada letra que colocamos num papel escrito ou cada som numa frase desintencionada. Por vezes os olhos falam, mas o papel em branco, deixa no branco as nossas falhas e a nossa vontade de dizer outras coisas por entre uma vírgula esquecida.
O modo como nos vêm determina-nos e existe um tão grande vazio quando nos vêm com gestos que não são nossos. Cada erro que cometemos faz-nos ponderar sobre nós e a nossa falta de ponderação. Há palavras que ferem numa intenção contrária.
Aristóteles via na comédia a acção de homens inferiores e é assim que somos abandonados pelos deuses, sendo o destino a nossa própria acção. Quando na graça procuramos a graça no outro, corremos o risco de magoar no amor o objecto do nosso afecto, no trabalho as horas perdidas do colega e na saúde uma dor que não calculamos.
Para Bergson o riso é a característica mais intrínseca do humano. Na natureza o humor está nos nossos olhos. No homem o humor parte de uma comunhão de vontades...
Cabe a cada um de nós medir os nossos limites, as nossas subtilezas, de forma a não colocar o outro em causa no desgaste que cada acção acarreta. Nas horas perdidas, nas frustrações das impossibilidaddes que almeja, nos telefonemas não retribuídos, num bom dia, num adeus ou num obrigado. Ao reconhecer o trabalho que leva à construção de um jardim, devemos agradecer ao jardineiro cada semente que plantou, ainda que agora, em flor, a àrvore pareça deslocada do canteiro.
A nós resta-nos pedir Desculpa.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Abraça-me, só Hoje!

Ele persegue-nos na nossa imaginação, capaz de nos destruir e arrasar sem que percebamos que só nós o deixamos existir. O Futuro é a nossa incapacidade de lidar com a morte: - Se há um amanhã, então hoje não é o fim, e há tempo.
O problema é quando nos vemos sozinhos, abandonados no amanhã, porque já hoje foi assim. sentimo-nos pequenos, demasiado pequenos. O Futuro vulnerabiliza-nos de tal forma que esquecemos o que conquistámos hoje e a glória de ontem.
Por outro lado, a sua incomensurabilidade torna-o demasiado forte, uma prisão sem grades, castra-nos e imaginamo-lo a libertar-nos. Não há tarot, astrologia ou karmas que justifiquem o nosso futuro. Ele existe e nós deixamo-lo tornar-se mais presente, ou não, nas nossas vidas.
Pessanha escreveu o mais belo soneto português. E se não houvesse futuro? Se o meu leito de morte tivesse desaparecido, a minha mesa de cear e o vinho? O meu Corpo seria o meu próprio limite, e a eternidade destruir-me-ia. Porque a eternidade é muito tempo...

Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho,
Onde esperei morrer - meus tão castos lençóis?
Do meu jardim exíguo os altos girassóis
Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?

Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)
A mesa de eu cear - tábua tosca de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
- Da minha vinha o vinho acidulado e fresco...

Ó minha pobre mãe!... Nem te ergas mais da cova.
Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova...
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.

Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais,
Alma da minha mãe... Não andes mais à neve,
De noite a mendigar às portas dos casais.


Por vezes penso até que ponto a Loucura não será a consciência da Eternidade! A solidão destrói-nos quando a projectamos no Futuro e o Amor parece ser a única salvação. Mas e se as setas de Cúpido tiverem sido destruídas, o vinho de Baco derramado, as alianças fundidas e os véus rasgados?
Tal como o Futuro a incomensurabilidade do Amor também está em nós. Aceita cada abraço que te damos porque assim também tu nos abraças. Ele é o gesto mais completo, quem nos abraça protege-nos as costas e deixa-nos proteger também. Existe uma tal vitalidade num abraço que quando nos mimamos os dois, os nossos corpos aproximam-se e os nossos corações sincronizam-se. Amados, amantes, amigos que nos devolvem num abraço a pequenez insignificante do Futuro. Porque ainda é terrível não saber o Futuro.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

O Espelho de Pandora

Duas coisas que sempre me fascinaram foram caixas e espelhos. Talvez seja porque uma esconde na ânsia de ser descoberta e a outra mostra a nossa vontade de nos escondermos.
Caixas de perfumes que já acabaram, de sapatos que guardam outros sapatos, a das bolachas com uma única bolacha e as outras. Porque será que tão poucos presentes ainda vêm dentro de caixas? E o que escondemos nós lá?
Cartas de amor, convites e bilhetes de uma ida ao cinema e de cujo filme nem nos lembramos, um papel rasgado com uma nota ainda mais rasgada. As fotografias que não queremos que ninguém veja, segredos, indiscrições que não queremos perder. Um chocolate que abandonamos numa caixa só para que tenhamos o prazer de o encontrar. Cada caixa é um mistério eterno, porque fechada ela representa a nossa ânsia de sermos abertos, de que nos descubram aos poucos ou por inteiros. Porque temos caixas ao fundo dos nossos roupeiros ou debaixo da cama? Podíamos fechá-las com chaves, mas nem isso queremos, senão porque seriam de papel?
Já o espelho é o contrário. Escondemo-nos sempre atrás de um espelho. Cabelo penteado, maquilhagem, roupa engomada, a mancha no dente que disfarçamos quando treinamos o sorriso. Escondemos quem somos para que não nos descubram. Não podia estar o espelho dentro do roupeiro, lá ao fundo, ou debaixo da cama? Porque haverá um prazer sem igual ao de nos perfumarmos em frente ao espelho? Que cheiros ou que desejos queremos esconder atrás do nosso perfume?
Edward Burne Jones pintou a sua Vénus ao espelho, na água, Velázquez deitou-a nua ao espelho, o que enfureceu uma feminista. Porque se esconde sempre o amor ao espelho e o guardamos invariavelmente dentro de uma caixa?

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Um beijo com Arte

Se o meu Reino coubesse numa caixa de cartão, teria tantos tesouros, quanto uma ilha encantada:

Sementes, sempre gostei de sementes;
Bombons, muitos;
Um poema e um verso;
As últimas páginas de um livro de Agatha Christie;
Uma receita;
Uma fotografia de ninguém;
Um leão;
Recortes de jornal;
Uma fita de cetim para atar sonhos;
Um chupa-chupa da minha infância;
Um bilhete só de ida;
Uma amostra de perfume;
Um Cd que nunca ouvi;
Um desenho num guardanapo;
Uma pedra que encontrei na rua;
Um postal;
Um selo para lamber;
A página de uma agenda com uma data só minha;
A Prata de um chocolate de Natal;
Uma caixa de música;
Uma rolha;
O mar e uma nuvem;
Uma colher roubada;
Um cavalo branco;
Uma súplica e um agradecimento;
A caneta com que escrevi o teu nome;
Uma mensagem que não li;
Uma coisa roubada;
Uma oferecida;
Outra encontrada;
E outra abandonada;
E a chave do meu coração.

O meu Reino tem a minha Família, os meus Amigos e os meus Amores, todos numa caixa de cartão fechada com um laço. E um nó tão forte prende-me a ela que só as lágrimas e os sorrisos que me dão, a abrem.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Rosa Regina Inter Pares

Durante oito anos, uma das mais prestigiadas cantoras líricas europeias entrou no seu camarim e encontrou-o repleto de Rosas Brancas e Encarnadas.
Nascida em Lisboa, Regina Pacini viria a ser a voz mais apreciada da ópera do início do século. Marcelo Alvear, um jovem de uma família aristocrata Argentina, apaixona-se perdidamente por Regina e conquista-a com Rosas. Ela, Turandot conquistada, abandona a música e parte para o outro lado do Atlântico onde se torna na única primeira-dama estrangeira da Argentina.

Desde sempre que as flores e o amor andaram entrecruzando-se. Sejam rosas, camélias, jacintos ou lírio, elas conquistam um coração no simples gesto de as levar à face e cheirá-las. Apolo transforma o seu amado pastor em um Jacinto. Para Garrett a flor de amor é o Lírio. Marguerite e Violetta falavam por Camélias aos seus amantes e para Júlio Dantas há Rosas de todo o ano. Mais uma vez a rosa... Manuel María (1929-2004) escreve, o que é para mim, um dos mais belos poemas sobre rosas:

SEMPRE a rosa. Sempre:
a forma,
a cor,
o recendo,
a luz,
a perfeccian da rosa.
Prefiro a rosa vermella.
E amo a rosa branca porque,
cando lle digo simplesmentes: ROSA,
entrecerra os ollos,
treme e ruborece.

Cada flor trás em si uma ingenuidade e um ardor que ultrapassa o nosso imaginário.
Marcelo comprou todos os discos em que a voz de Regina estivesse eternizada, e ela nunca se arrependeu de não voltar a cantar. Porque no fim ficaram só as Rosas, num laço que os prende.
E durante vinte e três anos, ela visitou-o e levou-lhe Rosas, ao camarim da eternidade, Brancas e Encarnadas no aniversário da sua partida.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

À Janela do Mundo


Quais serão os cheiros do Mundo?
Para ele, o da Terra molhada depois de chover. Para ela, a terra seca e queimada pelo sol numa planície. Para o marinheiro, o mar revolto de um dia de inverno e para a sua mulher a maresia calma de uma noite de Verão. Para os namorados, a noite pintalgada de estrelas intermitentes, para os solitários os pinheiros no Natal e para a beata o rosmaninho na Páscoa. Todos têm os cheiros dos momentos que os abraçam em cada recordação.
O meu Mundo tem cheiros que outros mundos não sabem sentir. Tem terra, papel, tintas, bordados, torradas, mantas, sopa, lareiras, água de um chuveiro, patos num lago, botões de rosa, laranjas e morangos, pessoas em esplanadas, risos dos que amamos, olhares...
Todos temos um cheiro que vai mais além, que se transporta e nos transporta para um Mundo tão conhecido, como privado.
De todos os sentidos o olfacto leva-nos mais rápido e eficazmente para o mundo das emoções e dos sentimentos, como uma melodia que nos acolhe nos seus braços ou um filme que nos faz chorar.

E se o mundo não tivesse cheiros?

Filipa Pais canta À Porta do Mundo, onde “ por trás de tudo o que importa, vem um sentido para a vida”. Pensar que as portas que não existem estão na nossa memória como janelas que não fechamos, por onde os cheiros entram, contra a nossa vontade, e arrastam consigo todas as memórias. Os cheiros dão-nos o sentido do passado, das viagens que fizemos, das pessoas que conhecemos, do que sentimos quando volta à memória o cheiro dos nossos avós. Nenhum cheiro aponta para o Futuro, porque eles são o nosso passado mais certo. Basta pensar que a arte ainda não consegue captar no imediato a nossa memória olfativa, numa janela aberta de Pierre Bonnard.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Kelly, Grace

Grace Kelly de certeza que usava um bom perfume. A diva de Hitchcock marcou sem dúvida a história do cinema não apenas pela fabulosa cena do beijo em Rear window, mas também por um porte e uma elegância que se confirmaram quando Princesa do Mónaco. A sensualidade de Grace Kelly estava precisamente nesse misto de mistério e sedução que transparece em cada cena. A vulnerabilidade falsa de Country Girl ou a irreverência de High society ou To catch a thief. Contracenou, ainda que em meia dúzia de filmes, com Ava Gardner, Clark Gable, Cary Grant, Frank Sinatra. E depois de Princesa alimentou o sonho de regressar ao cinema. É neste regressar que encontramos nela o cheiro do cinema, imperceptível, eterno. Um vestido branco que flutua por entre sofás, uma écharpe que se despe, um odor que fica por entre as películas femininas de cada filme.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Solidão em Cem Anos

Poderá a solidão ter um cheiro, uma textura, um toque ou sabor... Não sei. Talvez a solidão seja tão só o medo de podermos estar sozinhos, mesmo que nunca estejamos. A solidão ganha todos os dias novas dimensões novas cores: Só no meio de tanta gente; Tenho amigos mas sinto-me só.

Na verdade, o sentimento torna-se todos os dias no reflexo do nosso medo de já estarmos esquecidos, antes de morrermos. De reconhecermos que abandonámos alguém e que agora já ninguém nos encontra.
Todos adoramos abrir o e-mail e ter lá mensagens, mesmo que sejam as newsletters que nos enviam, ou o correio e ter uma carta, mesmo que seja a conta da água. Não importa se um sistema operativo pré-programado nos envia seja o que for. É reconfortante saber que afinal se lembram de nós e o nosso dia até parece correr melhor. Receber uma mensagem no telemóvel que podemos não responder, ou uma chamada perdida que retribuímos mais tarde, amanhã, depois, talvez...
Quando Gabriel Gracía Marquéz escreveu os seus cem anos não podia calcular que hoje íamos estar tão acompanhados quanto sós. Os Buendía são um reflexo das nossas famílias, dos nossos amigos, de nós mesmos em cada um deles. Úrsulas, Aurelianos, Amaratas somos todos nós a envelhecer, a lutar, a ver chover, amados, rejeitados, mortos. A Solidão tem o seu próprio cheiro, o da nostalgia dos sorrisos que temos medo de dar sozinhos e que ninguém note.
A imagem que acompanha este cheiro tinha a seguinte legenda: "Digam o que disserem o mal do século é a solidão". Não sei se será. Agora a certeza de que vamos ser esquecidos, não nos deixa iludir, mesmo que um dia o Nosso quadro a óleo seja o espólio de um museu, a Nossa imagem restaurada apareça num filme ou a Nossa voz recuperada e remasterizada. O medo da legenda apavora-nos: Figura desconhecida. Porque será que o cheiro dos nossos avós, do passado, das suas casas é também o cheiro da solidão. Cheira o Palácio da Ajuda a Solidão?